Ana Flávia Toller (Curta) – TX
Olá queridos leitores do Ócios,
Nesta semana o Frames de Ofício traz análise de um filme. Antes de mais nada, justifico minha escolha: se faz urgente utilizar a Sétima Arte como espelho da nossa realidade frente ao cenário político recente. É exatamente esta a proposta do filme, criticar toda a hipocrisia das classes sociais brasileiras. Dessa forma, primeiramente, é essencial que assistam ao filme (disponível no Youtube) para depois lerem minha crítica. Bom filme e boa leitura!
“Cronicamente Inviável” é um filme de Sergio Bianchi lançado no ano de 2000. O roteiro aborda histórias pontuais, cujos personagens são brasileiros, que, individualmente, em metonímia, representam um reflexo das ações, modos e paradigmas da sociedade brasileira como um todo.
É nítida a crítica feita às mazelas do sistema político e social do Brasil, perceptível através do gotejamento de ironia na obra, a fim de incomodar o espectador. Desse modo, Bianchi revela a “neutralização” de algumas realidades, o desvio do olhar sobre estas que, na verdade, precisariam ser vistas e repensadas através de um sociológico e antropológico.
A começar pela história da doméstica, cuja mãe exercera o mesmo ofício, trabalhando para a mesma família. Um tipo de miséria que se estende de geração a geração, e grita o caráter nocivo da estratificação social. Escancara a falsa noção de que a meritocracia é solução justa e essencial para todas as questões. É fácil aplica-la em um contexto de realidades econômicas padronizadas e privilegiadas, mas, difícil justificar sua efetividade frente às situações expostas no filme e não incomuns no Brasil. A hereditariedade da miséria tornou-se anacrônica, e sob certos aspectos pode ser tratada como consequência do sistema de escravidão vivido pelo país.
Em outra cena do filme, o cozinheiro do restaurante impede o mendigo, que procurava alimento, de vasculhar o lixo, enquanto, oferece a um cão, uma refeição. Por óbvio o cachorro merece um tratamento digno, mas o foco desta cena é mostrar como um ser humano não se sensibiliza pela situação de seu semelhante. Os indivíduos tornaram-se sensivelmente mais individualistas e indiferentes, não se postando como semelhante a outras pessoas, menos favorecidas, ou em situação de marginalização.
É muito contundente também, uma outra exposição feita: a crítica à felicidade como marca da brasilidade. A obra mostra a felicidade crônica como método de “perfeita dominação autoritária”, já que, a obrigação do estado de alegria contamina toda a população, favorecendo as esferas de dominação. O povo, vê-se imerso nesse turbilhão de alegria, dentro de suas próprias bolhas, e o fato de alguém não se sentir pertencente a essa realidade é posto como falha individual, uma disfunção. A felicidade, passa de sentimento inerente e natural (em certa medida, pois a tristeza é natural da mesma forma) a instrumento coercitivo e obrigatório, renegando qualquer outra característica sentimental do brasileiro ao taxá-lo como povo que emana alegria. É espantoso e contrastante que, em certa cena, em que em meio à euforia do trio elétrico, um mendigo dorme na calçada, enquanto a urina de um indivíduo aleatório escorre no local em que ele se encontra deitado; uma verdadeira metáfora, referente ao fechar de olhos da sociedade diante das mazelas sociais.
Em certo momento, uma das personagens principais questiona: o que é mais importante, convencer ou explicar a realidade? Na sequência responde que convencer é, acima de tudo, mais conveniente. A alienação é, por suposto, um fato e uma forma de manutenção de poder.
Outro ponto tangenciado pelo roteiro é a corrupção. Há uma personagem, cidadã de meia idade, que conseguiu ascender economicamente por meios pouco virtuosos. Junto à ascensão econômica, no entanto, não elevou seu senso de dignidade e justiça. O filme nos leva a entender que muitos cidadãos se submetem à corrupção de valores e ideais para integrar a parte mais superficial do sistema. Submetem-se a qualquer situação para conseguir uma posição de visibilidade social. Até a personagem mais intelectualizada da obra, que efetivamente sabe os limites do probo e do torpe, revela-se um indivíduo sem moral, participando do crime de tráfico de órgãos, gerenciado pela referida mulher.
Existe, um personagem bem característico que trabalha como garçom. Ele não se deixa dominar pelos patrões e critica tudo quanto lhe convém, é bastante afrontoso e uma ameaça aos mais poderosos. Seu perfil, no entanto, não é representativo. A maioria das pessoas oprimidas não se sentem encorajadas lutar; afinal, muitas vezes a elas é inconcebível a ideia de perder o emprego, essencial para (sobre)viver.
Finalmente, trago à baila duas cenas finais. A primeira é aquela que retrata um furto na praia e os civis que ali estavam, imediatamente abordam o jovem infrator de maneira brutal. Não só o detiveram, mas fizeram “justiça com as próprias mãos”, batendo no menor de idade, sem dar atenção aos apelos de uma mulher que dizia: “violência não resolve nada”. A reação inflamada da população a acontecimentos desse feito é retrato de uma característica peculiar do brasileiro médio: clama por uma justiça que fere a dignidade humana, por um policiamento cada vez mais ostensivo, sem refletir devidamente que sua frase de efeito “bandido bom, bandido morto” marginaliza muito mais e conflita com a premissa de ressocialização. A segunda cena apresenta uma mulher de classe social alta doando brinquedos a crianças de rua. De maneira bem impessoal, parece muito orgulhosa de sua benfeitoria, enquanto as crianças, mesmo que satisfeitas, brigam por aqueles objetos de desejo resultantes da propaganda. A caridade que se faz é aquela deturpada, que tapa o sol com a peneira e tem como pano de fundo a visibilidade social, o que importa para a senhora abastada é que seu entorno, também abastado, reconheça sua benfeitoria.
Em linhas gerais, é proposto em certo monólogo da obra que tudo gira em torno da “seleção natural da rua e do mercado”. E, o mais impressionante e doloroso é que mesmo o filme sendo produzido no início do século XXI, 18 anos depois, a realidade demonstrada permanece, cria raízes mais profundas e manifesta-se de maneira mais exacerbada, principalmente durante a corrida presidencial. Afinal, deixo aqui a provocação tomada de uma reflexão feita no próprio filme: “tradição é questão de opinião”. No Brasil atual notamos uma alta difusão da tradição na emissão da opinião. Nossos avanços sociais, espaços de fala e de liberdade política insurgem ameaçados pela emissão de opiniões tradicionais, infundadas e abarrotadas de preconceito. Afinal, convencer é mais conveniente do que explicar a realidade.